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sábado, 16 de maio de 2015

Pedras de Moinho

Dejanir Haverroth

A humanidade vive o momento mais contraditório de toda a sua existência. Como os meios proporcionados pela tecnologia, qualquer pessoa, por mais simples que seja, pobre ou rica, habitante de uma metrópole ou de uma floresta, consegue se comunicar com pessoas de quaisquer parte do planeta, de forma individual ou coletiva. 

Com essa mesma tecnologia as pessoas tem acesso a informações de todas as ciências: história, biologia, matemática, botânica, artes, enfim. Basta imaginar, clivar, e em frações de segundos tem o mundo em suas mãos.
                                                                                                                 
A evolução é tanta que a cada dia surgem mais autodidatas e mais pessoas se entediam com as ladainhas das academias e os conteúdos frios dos livros empoeirados das bibliotecas das faculdades. As informações estão acessíveis com recursos audiovisuais e professores, de forma gratuita e interativa, a um toque do dedo.

Com tantas informações, tantas possibilidades, as pessoas estão com dificuldade para filtra-las e fazer bom uso do que aprendem. O contato com o mundo externo está desconectando as pessoas delas mesmas e de quem está mais próximo. Muitas vezes conversamos com pessoas distantes e ignoramos alguém que está do nosso lado.

Está se perdendo a referência do verdadeiro sentido da comunicação. Aquela que conecta as pessoas, primeiro com elas mesmas, depois com o meio, os próximos e assim por diante. Muitas pessoas já se esqueceram da comunicação plena – desde o sentir-se, ouvir-se, tocar-se e ver-se. Ainda mais esquecido ficou o sentir o outro, ver o outro, ouvir o outro.

As vezes precisamos ir longe, na história, nossa própria história, para buscarmos referências perdidas.

Pesquisando em minhas memórias, lembrei-me de quando eu era menino, no interior do Paraná. Em Nova Prata do Iguaçú. Morávamos em um sitio, e cultivávamos quase tudo o que consumíamos. Éramos em seis irmãos, quatro meninas e dois meninos. Eu era o caçula dos homens, e uma de minhas obrigações semanais era ir ao moinho levar milho para fazer fubá. A polenta era uma das bases de nossa alimentação.
O moinho ficava mais no interior ainda. Pendurado em um penhasco, na beira de um córrego, perto do Rio Jaracatiá - a distância de três quilômetros de casa. Cada viagem parecia uma odisseia, e demorava quase uma eternidade, pelo peso do saco de milho que eu transportava em uma carriola.

Os donos do moinho eram Dona Andressa, sua filha Pedra e o genro Olegário. Pessoas muito simples, amorosos e, ao meu ver de menino, perfeitos. Andressa era bem idosa, Pedra e Olegário eram de meia idade, uns 50 anos cada. Eles viviam muito bem naquele lugar que parecia encantado. Um verdadeiro cenário de filme do Hary Potter.

Dona Andressa era uma poderosa curandeira. Temida pelos lobisomens que circundavam a região. Ela contava as histórias de surras que deu em lobisomens em seus confrontos. Fazia chás, xaropes, rezas e outros rituais de curas.

Seu Olegário era tranquilo, falava pouco e enxergava com apenas um olho. Pedra mancava de uma perna e falava o tempo todo. Eles atendiam as pessoas que chegavam com as moagens (cereais para fazer farinha) com o mesmo carinho e simplicidade que a vida lhes deu como essência.

O movimento era pouco, e à velocidade do tempo. De vez em quando chegava um viajante a cavalo ou a pé, trazendo ou buscando algum produto de mó. Olegário conversava comigo com toda a atenção e simpatia e eu ficava por ali todo o tempo possível, brincando ou ajudando em alguma coisa. Depois de transformado o milho em farinha e eu ia embora. Chagava no moinho pela manhã e saia no fim da tarde. A velocidade do tempo era outra. A vida acontecia o tempo todo e ninguém tinha pressa.
Pouco antes de eu deixar minha terra natal e vir embora para o norte, fui outra vez no velho moinho levar a moagem. Naquele dia a viagem demorou mais. Fiz parada para mergulhar no velho açude do Nilo, colhi laranjas temporãs nos laranjais à beira da estrada e passei na casa da professora Sonilde para beber água e descansar. Eu tinha 13 anos, quase 14 - era mês de maio, e meu aniversário seria em junho. Era frio de início de inverno. Foi uma das viagens em que eu menos me preocupei com o tempo - cheguei em casa já era escuro e, naquela noite, por conta de minha demora, uma sopa substituiu a polenta no jantar.

Ainda no moinho, enquanto eu esperava a moagem ficar pronta, aproveitei para me despedir daquele lugar. Eu desconfiava que seria a minha última passagem por aquele caminho, naquela fase de minha vida. Minha família estava se preparando para ir embora dali, para o sertão do Mato Grosso. Seu Olegário e Pedra me receberam muito bem, como sempre – Dona Andressa já havia cumprido sua missão nessa terra e partido, deixando muitos afilhados e boas lembranças nos corações das pessoas daquele lugar.  

Naquele dia, lembro bem, ajudei no moinho e a dar comida aos porcos. Em troca ganhei almoço. Era galinha com polenta e feijão. Andei nos penhascos, nos canais de água que moviam as pedras do moinho, desci até a grota do pequeno rio, observei as pombas saleiras e as juritis - sevadas pelos restos das moagens - e procurei frutas silvestres (não encontrei nada. Não era tempo). Embora tudo isso fosse rotina em minhas visitas ao moinho, naquele dia foi especial. Guardei cada imagem, cada som e cada cheiro ou sabor em minha memória. Minha inteligência emocional parecia saber o que, e porquê eu estava fazendo.

Já era quatro da tarde, e eu conversava com seu Olegário, ao lado das pedras do moinho - que rodavam sem parar, tão próximas que pareciam juntas, embora nem se tocassem. Neste momento Pedra chegou com um bule de chá de cidreira com leite e pequeno cesto com pão de milho coberto com banha de porco e açúcar.

Em volta das pedras do moinho e comendo o lanche, o velho casal começou a falar sobre a vida e os relacionamentos. Eles sabiam da mudança. Que íamos para o sertão. Eu mesmo tinha contado.

Eles pediram para eu observar as pedras de moinho. Elas eram enormes e a roda d’agua que as moviam parecia uma roda gigante. Como as pedras se comunicavam? Como transformavam milho em fubá e trigo em farinha? Como separavam o amido e a pele com tanta precisão? Como estavam tão próximas e não se tocavam, não se feriam?  De tão próximas as pedras, a farinha saia muito quente depois de passar pela mó, quase torrada, por isso a polenta daquele tempo era mais saborosa do que as de hoje.

Realmente é incrível como as duas pedras trabalham tão próximas. Uma permanece fixa, na base, e a outra roda sobre ela. Se chamam “Mó de Cima” e “Mó de Baixo” - uma deitada sobre a outra. A de cima tem um buraco bem no centro, onde é despejado, aos poucos, os grãos que passam entre as pedras em movimento.

Para se fazer a farinha, é preciso passar, pelo menos, duas vezes o cereal entre as pedras. Na primeira vez as pedras ficam um pouco mais afastadas, cerca de cinco milímetros. Nesta fase é separada a pele e o amido do grão. Na segunda passagem a distância entre as pedras é quase imensurável. Quando o produto sai pelo espaço já é farinha, pronta para a polenta.

Como alguém consegue fazer uma coisa dessas? Fazer duas pedras enormes trabalharem assim, com tanta harmonia? Precisa ter muita inteligência, comentei admirado.

Apesar de frequentar aquele lugar anos seguidos, eu não tinha parado para meditar a respeito. Durante uma hora inteira eu ouvi Pedra e Olegário explicarem como as pedras eram feitas, tão perfeitas.

“As pedras são escolhidas, em duplas - tamanhos e consistências semelhantes. São cortadas e deixadas parecidas em tamanho e forma. Depois são colocadas uma sobre a outra, na mesma posição em serão usadas no moinho, então começa o período de ajuste.
Elas são esfregadas uma na outra, de forma que o desgaste corrija as diferenças. Uma corrige a imperfeição da outra para que possam se encaixar. Para que fiquem perfeitamente ajustadas. Enquanto houver “desajustes”, não estarão prontas para o moinho. As duas pedras sofrem com o atrito, mas no final se moldam. Cada uma perde um pouco de si para dar lugar a imperfeição do outro. Cada uma perde um pouco da sua imperfeição para se moldar à outra.
E se um dia uma das pedras se quebrar, a outra não poderá ser usada sem que passe pelo mesmo processo com outra pedra, que por ventura também perdeu sua parceira. Dessa forma, sempre que for fazer um moinho, é preciso de duas pedras que se encaixam perfeitamente.”

Depois dos sábios ensinamentos, terminamos de fazer o lanche da tarde, peguei minha moagem e me preparei para ir embora. Antes de eu partir, Pedra me falou: “Sei que vai pra longe, talvez nunca mais te veja. Mas não se esqueça da lição das pedras do moinho - trata-se de uma das mais antigas lições da sabedoria humana sobre relacionamentos”. Na época não entendi direito, mas acatei o conselho e parti.

A vida seguiu. Fui para o Mato Grosso, depois Rondônia e de Rondônia para o mundo. 35 anos se passaram, cresci em estatura e em ciência, me casei seis vezes e tive cinco filhos – o caçula já é quase adulto (17 anos). O tempo passa e não me canso de aprender. Estou na fase de ruminar minhas memórias e reaprender. Ver o que ficou guardado sem digerir.

Meu pai Lucas costumava dizer que a vida é de fases, e a velhice serve para repensarmos a vida. Muita coisa se passou rápido demais e não aproveitamos. Muitas informações colocamos na mente sem tirar lições. O velho tinha razão.

  Nesta semana me peguei pensando em Dona Andreza e no moinho de pedra. Fiquei nostálgico e fiz um mergulho profundo em minhas memórias, consegui sentir o cheiro do fubá quente, recém moído. Senti o sabor das laranjas temporãs de maio. Parece que senti no corpo a água fria do açude do Nilo e a dor no dedão do pé sem a unha, depois de um tropeção nas pedras dos caminhos de Nova Prata.

Agora, as lição das Pedras de Moinho fazem muito sentido para mim. Muitas vezes, nas relações afetivas, profissionais, familiares e sociais, temos que ceder um pouco. Deixar desgastar algum comportamento, crenças e até valores nossos, para darmos lugar aos comportamentos, crenças e valores dos outros. Não importa se somos a “mó de cima” ou a “mó de baixo”, precisamos nos entregar ao molde para que a relação seja harmoniosa. 


Pedras de Moinho - Você sabe o que é uma pedra de moinho? Ou melhor, “Pedras de Moinho”? Assim mesmo, no plural (Mó de baixo e Mó de cima). Elas são produzidas em duplas e assim trabalham. Há muitos anos, muita antes da energia elétrica, da indústria e da tecnologia, o homem já fazia farinha de com cereais, como trigo, milho e sorgo em moinhos de pedra, movidos por força do homem, por animais, vento ou água. Não há registro preciso dessa invenção, mas acredita-se que existe há mais de seis mil anos. 

14 comentários:

  1. Parabéns meu irmão! Adorei a história! Aproveitei para reavivar a memória, já que, diferente de você, não tenho " memória de elefante". Muitas lembranças do tempo que vivíamos em Nova Prata do Iguaçu... Bjus Dihdahh Haveroth

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    1. Minha irmã Maria Nadir.... obrigado por ler e comentar. Você é a principal responsável por eu achar que escrevo, as vezes, e gostar de leitura. Beijão!

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  2. Estamos sempre nos amoldando sem interrupções,assim como o "Mo de baixo e o Mo de cima".Sempre enxergando com todos os sentidos e às características organolépticas sempre afiadas nas lembranças de outrora comparando-as com as hodiernas.Assim usaremos sempre o hemísféro direito um tanto quanto esquecido.....

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  3. Parabens! - Il tuo testo e scritto in maniera da immergersi subito, ritrovandosi a punto nel mezzo della storia. Seguendo, vedendo (tu come menhino/ragazzo/uomo...), facendo, si, essendo la bambina / la ragazza / la giovanne donna e la donna adulta. Va bene,"... 6 volte... oo !!!!" non ci possa andare, ma comprendere :)
    La cosa proprio grande per me e il fatto, ché qui sei tu, ché hai vissuto questa storia (perché il senso delle 2 pedras de Moinho conosco), la racconta "di prima mano", ci scopre l'insegnamento tanto antico quanto saggio e ce lo fa participare! Bellissimo!

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    1. Amica Daniela, brava donna, belissima, inteligenta e potente!!
      Grazie tanti per fa lettura della mia cronica. Grazie per comentare.
      Sono troppo felice com te per avermi fatto importante com la tua attenzione.
      Tu sei speciale!!
      Bacio!

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  4. Recentemente visitei a zona rural das Serras Gaúchas e tive a oportunidade de conhecer um moinho construído pelos imigrantes italianos. É interessante notar que a história daquele moinho não está tão distante da sua história. Tirando a parte filosófica do seu conto, que é muito boa, me encanta a simplicidade daquela vida. Sua história me fez ver que " O quatrilho" e "A cocanha", excelentes livros, recomendo a leitura, não são meras fantasias do autor.

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    1. Mestra Ivone, obrigado por comentar! É verdade... no sul tem varios moinhos que servem como pontos turísticos. Vou ler os livros que recomendaste. Sim, também creio que os autores colocam sempre um pouco de sua história até mesmo nos contos. (Eu anunciei que se tratava de um conto, mas acho que é uma crônica). De vez em quando me confundo... rsrsrsr
      Obrigado por comentar.

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    1. Obrigado, Loi!!!
      Espero ler, em breve, tua crônica sobre o balainho do Nono.
      Beijos!

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  6. Linda História, me emocionei, senti e vivi enquanto lia. Parabéns, e fico no aguardo de muitas outras historias e quem sabe até um livro seu de contos. bjos Maria

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Fico feliz que tenha gostado!
      Tenho outras história pra contar, em breve!
      Obrigado por comentar
      beijos!

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  7. Qua história linda! Também sou de Nova Prata, e como vc ia no moinho mas ia a cavalo doce lembranças.

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