Pesquisar neste blog

domingo, 24 de maio de 2015

Deja Beija Tereza

Dejanir Haverroth
Eu e meus cinco filhos visitando o senário de minha infância
Dizem que quando envelhecemos vamos de encontro às memórias mais profundas, de quando éramos crianças. Vamos à busca da nossa criança interior, perdida, esquecida ou sufocada no auge da força da vida adulta. Esse reencontro é o auge da vida, quando juntamos a experiência com a pureza, a alma e a essência verdadeira - o que nós somos de fato, no cerne de nossa identidade. Nesse período parece que não sonhamos mais, enquanto dormimos. Os sonhos são substituídos pelas memórias das coisas boas que vivemos. Das coisas que realmente fizeram sentido na vida e fazem parte de nosso “eu” mais profundo.

Tudo o que fizemos na vida adulta, erros ou acertos, vitórias ou fracassos, é resultado de nossa luta pela sobrevivência. O afã de ser útil, de competir, mostrar força, deixar legados, deixar descendentes. Nesse período esquecemos quem somos e competimos para provarmos que somos capazes. Queremos “Ser alguém”. É uma pena que a vida não vem com um manual de instruções.  Precisamos viver para aprender que já “somos alguém”. Temos que viver coisas complexas para entendermos as simples.

Não sei por que, mas o mês de maio me traz muitas lembranças. Sobretudo de uns anos pra cá. Penso que meu relógio biológico quer me dizer alguma coisa. Hoje, depois de almoçar uma macarronada com meus filhos e amigos, fui sestear. Não havia bebido nada além de água, mas sentia um sono tão profundo que parecia mergulhar em mim. Embora o clima estivesse fresquinho (coisa rara em Ji-Paraná), eu me deitei sem me cobrir e liguei o ar condicionado. Adormeci em seguida.

Quando entrei no sonho fiz um mergulho profundo em minha infância. Como em uma viagem ao passado. Aterrissei em um potreiro (cercado de pasto) onde brinquei toda minha infância. Naquele momento eu brincava em baixo de um pessegueiro com outras crianças. Eu tinha três anos de idade, talvez. Próximo dali um paiol onde morávamos temporariamente. Minha mãe desmanchou a casa velha para forçar meu pai a construir a nova - a madeira estava toda pronta, no terreiro.

Embaixo de pessegueiro estava eu, a Tereza, sua irmã Maria e o Nande Franciozi. Perto dali minhas irmãs mais velhas e meu irmão, que cuidavam da Vana, minha irmã bebê. No terreiro do paiol minha mãe tomava chimarrão com a Nona Franciozi. Era de tardezinha e o frio do inverno chegava de mansinho. O dia era curto e lembro que o sol ameaçava se esconder por detrás da serrinha dos pinheiros do Írio. Do outro lado se via longe, além do vale, e o sol refletia na igreja da Floriza. Era o momento mais belo do dia. O cheiro da batata assada no forno a lenha anunciava a hora de reunir todos para comer.

Nesse senário comum de minha infância tinha uma coisa que eu ainda não conhecia. Todo esse romantismo e o desejo pulsante de viver a vida, que estava começando, me fez perceber que além de tudo aquilo, havia uma beleza que, a partir daquele dia, passaria a apreciar. Com pureza no coração e uma afetividade que até hoje carrego no peito, convidei Tereza, que brincava comigo debaixo de pessegueiro, para comermos batata doce quentinha, recém saída do forno a lenha. Ela me olhou tímida e eu a abracei e beijei seu rosto. Em minha inocência, queria incentiva-la a vencer a timidez.

Aquela foi uma das primeiras cenas da novela de minha vida. Teve poucos expectadores, e eram justamente meus irmãos. É a memória mais marcante e a base de minha identidade consciente, e eu tinha testemunhas. Por conta disso, eu sentiria o “peso” daquele beijo a partir do dia seguinte. Naquela hora lanchamos, Tereza e suas irmãs foram pra casa e logo nos lavamos na gamela e fomos para dentro de casa. No inverno as crianças se recolhem cedo para evitar resfriados e outras doenças trazidas pelo frio.

A vida era tranquila naquele sítio em Nova Prata do Iguaçú. Foi ali que eu nasci - na casa que minha mãe havia desmanchado para dar lugar à casa nova.  Lembro como se fosse hoje a velha casa. Minha mãe se admira quando eu conto com detalhes minhas primeiras memórias da infância e que me levam a uma velha casa. Eu devia ter dois anos de idade. Era uma casa alta do chão, apoiada em troncos de madeiras. Lembro-me da cozinha - para entrar havia uma escada bem alta, e da cozinha para o restante da casa tinha outra escada, um pouco menor, onde minha irmã Ade, sentava para dar mamadeira à outra, recém-nascida.

Do outro lado da sanga moravam duas famílias. Os Franciozi e os Varalli. Seu Ernesto Franciozi tinha muitos filhos, dentre eles várias meninas, todas muito bonitas. A Nona Franciozi, mãe de Ernesto, era bem velhinha e andava bem corcunda, apoiada em um bastão. Morava sozinha, numa casinha perto do filho. Os Varalli também tinham varias mulheres, todas bonitas, e um menino, Moacir, com quem fizemos fortes laços de amizade. Os varalli também tinham uma matriarca – a Nona Varalli. Ela era procurada por todos os moradores da redondeza para fazer xaropes, rezas e partos. Era nossa curandeira.

Mais perto de casa, do outro lado da cerca do potreiro, havia um rancho à beira-chão, coberto com lascas de madeira. Ao lado um pinheiro e aos fundos um açude. Ali morava uma família de caboclos. Seu João e seus filhos, dentre eles três meninas: Jandira, a mais velha; Maria, a do meio e Tereza, a mais nova - com a minha idade. Nossa relação de amizade era forte. Quase todos os dias nos encontrávamos para brincar – no potreiro, no paiol ou nos montes de palhas de milho ou feijão, no meio da roça.

O barraco do Seu João era muito simples, porém muito alegre. Eles não tinham rádio de pilha, mas nem precisava – eles cantavam o dia todo. Toda a família cantava e ouvíamos lá de casa. Todas as noites eles acendiam uma fogueira do lado de fora da casa. Diziam que era para proteger de insetos, cobras e outros animais, além de aquecer nos dias frios. Em volta da fogueira sempre tinha batata doce, pinhão ou milho verde, assados nas brasas.

Era uma vida simples que eles levavam, mas nada faltava - muito menos calor humano.  Embora minha família fosse descendente de alemães, nunca tivemos preconceito racial em nossa família. Nunca ouvi de meus familiares alguém dizer que éramos melhores que os outros por conta de “raça”. Também não éramos capitalistas e não olhávamos as pessoas com base em sua condição financeira.  Minha mãe é cabocla violeira e meu pai (in memoriam) um ex-seminarista. Tínhamos muito em comum com aquela família, portanto nossa convivência era muito harmoniosa e despretensiosa. 

A viagem ao passado terminou depois que eu visitei as pessoas que fizeram parte de minha primeira infância. Em minhas lembranças, olhei cada um nos olhos, sorri, disse coisas sem falar e me emocionei com elas. Todas isso aconteceu durante aquele profundo sono, na tarde de um domingo de Maio, depois da macarronada. Ao acordar, fiquei na cama por cerca de duas horas, meditando sobre o sonho e refletindo sobre a vida. Como certas coisas marcam nosso ser!?

Conclusão
Naquele dia, tempo e lugar onde o sonho me levou, foi o dia em que eu beijei Tereza. Ali se inaugurou em minha mente um novo caminho neural, que foi reforçado ao longo da vida. Eu era um piá genioso, teimoso (quem não é com três anos de idade?), e eu continuo sendo. Nunca fomos violentos, e a única arma que conheci na infância é o que hoje chamamos de bulling. A única forma de ir a forra com alguém era chamar de apelido e “inticar”. No dia seguinte ao beijo, na primeira pirraça que eu fiz para meus irmãos, passei a ouvir um sonoro “Deja beija Tereza!”. Convivi com a família de Tereza e com ela, é claro, até meus sete anos. Eu não lembro quantas vezes “beijei Tereza” e, quando fiz, foi na mais pura inocência. Diferente de hoje, naquele tempo não existia malícia com tão pouca idade. 

Esse capítulo de minha infância nunca foi, nem de longe, algo limitante. No fundo, eu me sentia prestigiado quando alguém dedicava essa musica a mim. Sentia na verdade que se tratava de uma forma de carinho. A maioria das vezes era motivo de graça e alegria, embora eu me mantivesse sisudo para bancar de durão e não admitir que eu fosse “O Cara que Beijou Tereza”. 

Gosto muito de beijar e tive o privilégio de beijar muitas mulheres ao longo de meu quase meio século de vida. Algumas nem o nome eu lembro, outras nem do beijo eu lembro. Mas hoje, pela primeira vez eu assumo: sou “O Cara que beijou Tereza”. E faria tudo de novo, inclusive com aquela musiquinha que ainda ouço quando passeio no meu “eu” mais profundo. Na verdade eu sou o “Deja Beija Tereza”, porque, lá no fundo, para mim toda mulher é (uma) Tereza.

3 comentários:

  1. "Deja beija Tereza " aposto que vc leu cantando como sempre fizemos e como faço até hoje. Bijus DIhdahh

    ResponderExcluir
  2. Parabens, caro Deja! Un altra storia profonda, cristallina, vera e cosciente, scritta in maniera bellissima. E stato un grande piacere, a legger-la. Dany

    ResponderExcluir
  3. Parabens por descrever tão bem! Me imagino nessa história, parece que faço parte dela.

    ResponderExcluir

Sejam bem-vindos. Não haverá censura aos comentários, exceto para textos agressivos de leitor anônimo.