Dejanir
Haverroth
A
humanidade vive o momento mais contraditório de toda a sua existência. Como os
meios proporcionados pela tecnologia, qualquer pessoa, por mais simples que
seja, pobre ou rica, habitante de uma metrópole ou de uma floresta, consegue se
comunicar com pessoas de quaisquer parte do planeta, de forma individual ou
coletiva.
Com
essa mesma tecnologia as pessoas tem acesso a informações de todas as ciências:
história, biologia, matemática, botânica, artes, enfim. Basta imaginar, clivar,
e em frações de segundos tem o mundo em suas mãos.
A
evolução é tanta que a cada dia surgem mais autodidatas e mais pessoas se
entediam com as ladainhas das academias e os conteúdos frios dos livros
empoeirados das bibliotecas das faculdades. As informações estão acessíveis com
recursos audiovisuais e professores, de forma gratuita e interativa, a um toque
do dedo.
Com
tantas informações, tantas possibilidades, as pessoas estão com dificuldade
para filtra-las e fazer bom uso do que aprendem. O contato com o mundo externo
está desconectando as pessoas delas mesmas e de quem está mais próximo. Muitas
vezes conversamos com pessoas distantes e ignoramos alguém que está do nosso
lado.
Está
se perdendo a referência do verdadeiro sentido da comunicação. Aquela que
conecta as pessoas, primeiro com elas mesmas, depois com o meio, os próximos e
assim por diante. Muitas pessoas já se esqueceram da comunicação plena – desde
o sentir-se, ouvir-se, tocar-se e ver-se. Ainda mais esquecido ficou o sentir o
outro, ver o outro, ouvir o outro.
As
vezes precisamos ir longe, na história, nossa própria história, para buscarmos
referências perdidas.
Pesquisando
em minhas memórias, lembrei-me de quando eu era menino, no interior do Paraná.
Em Nova Prata do Iguaçú. Morávamos em um sitio, e cultivávamos quase tudo o que
consumíamos. Éramos em seis irmãos, quatro meninas e dois meninos. Eu era o
caçula dos homens, e uma de minhas obrigações semanais era ir ao moinho levar
milho para fazer fubá. A polenta era uma das bases de nossa alimentação.
O
moinho ficava mais no interior ainda. Pendurado em um penhasco, na beira de um
córrego, perto do Rio Jaracatiá - a distância de três quilômetros de casa. Cada
viagem parecia uma odisseia, e demorava quase uma eternidade, pelo peso do saco
de milho que eu transportava em uma carriola.
Os
donos do moinho eram Dona Andressa, sua filha Pedra e o genro Olegário. Pessoas
muito simples, amorosos e, ao meu ver de menino, perfeitos. Andressa era bem
idosa, Pedra e Olegário eram de meia idade, uns 50 anos cada. Eles viviam muito
bem naquele lugar que parecia encantado. Um verdadeiro cenário de filme do Hary
Potter.
Dona
Andressa era uma poderosa curandeira. Temida pelos lobisomens que circundavam a
região. Ela contava as histórias de surras que deu em lobisomens em seus
confrontos. Fazia chás, xaropes, rezas e outros rituais de curas.
Seu
Olegário era tranquilo, falava pouco e enxergava com apenas um olho. Pedra
mancava de uma perna e falava o tempo todo. Eles atendiam as pessoas que
chegavam com as moagens (cereais para fazer farinha) com o mesmo carinho e
simplicidade que a vida lhes deu como essência.
O
movimento era pouco, e à velocidade do tempo. De vez em quando chegava um
viajante a cavalo ou a pé, trazendo ou buscando algum produto de mó. Olegário
conversava comigo com toda a atenção e simpatia e eu ficava por ali todo o
tempo possível, brincando ou ajudando em alguma coisa. Depois de transformado o
milho em farinha e eu ia embora. Chagava no moinho pela manhã e saia no fim da
tarde. A velocidade do tempo era outra. A vida acontecia o tempo todo e ninguém
tinha pressa.
Pouco
antes de eu deixar minha terra natal e vir embora para o norte, fui outra vez
no velho moinho levar a moagem. Naquele dia a viagem demorou mais. Fiz parada
para mergulhar no velho açude do Nilo, colhi laranjas temporãs nos laranjais à
beira da estrada e passei na casa da professora Sonilde para beber água e
descansar. Eu tinha 13 anos, quase 14 - era mês de maio, e meu aniversário
seria em junho. Era frio de início de inverno. Foi uma das viagens em que eu
menos me preocupei com o tempo - cheguei em casa já era escuro e, naquela
noite, por conta de minha demora, uma sopa substituiu a polenta no jantar.
Ainda
no moinho, enquanto eu esperava a moagem ficar pronta, aproveitei para me
despedir daquele lugar. Eu desconfiava que seria a minha última passagem por
aquele caminho, naquela fase de minha vida. Minha família estava se preparando
para ir embora dali, para o sertão do Mato Grosso. Seu Olegário e Pedra me
receberam muito bem, como sempre – Dona Andressa já havia cumprido sua missão
nessa terra e partido, deixando muitos afilhados e boas lembranças nos corações
das pessoas daquele lugar.
Naquele
dia, lembro bem, ajudei no moinho e a dar comida aos porcos. Em troca ganhei
almoço. Era galinha com polenta e feijão. Andei nos penhascos, nos canais de
água que moviam as pedras do moinho, desci até a grota do pequeno rio, observei
as pombas saleiras e as juritis - sevadas pelos restos das moagens - e procurei
frutas silvestres (não encontrei nada. Não era tempo). Embora tudo isso fosse
rotina em minhas visitas ao moinho, naquele dia foi especial. Guardei cada
imagem, cada som e cada cheiro ou sabor em minha memória. Minha inteligência
emocional parecia saber o que, e porquê eu estava fazendo.
Já
era quatro da tarde, e eu conversava com seu Olegário, ao lado das pedras do
moinho - que rodavam sem parar, tão próximas que pareciam juntas, embora nem se
tocassem. Neste momento Pedra chegou com um bule de chá de cidreira com leite e
pequeno cesto com pão de milho coberto com banha de porco e açúcar.
Em
volta das pedras do moinho e comendo o lanche, o velho casal começou a falar
sobre a vida e os relacionamentos. Eles sabiam da mudança. Que íamos para o
sertão. Eu mesmo tinha contado.
Eles
pediram para eu observar as pedras de moinho. Elas eram enormes e a roda d’agua
que as moviam parecia uma roda gigante. Como as pedras se comunicavam? Como
transformavam milho em fubá e trigo em farinha? Como separavam o amido e a pele
com tanta precisão? Como estavam tão próximas e não se tocavam, não se feriam? De tão próximas as pedras, a farinha saia
muito quente depois de passar pela mó, quase torrada, por isso a polenta
daquele tempo era mais saborosa do que as de hoje.
Realmente
é incrível como as duas pedras trabalham tão próximas. Uma permanece fixa, na base,
e a outra roda sobre ela. Se chamam “Mó de Cima” e “Mó de Baixo” - uma deitada sobre
a outra. A de cima tem um buraco bem no centro, onde é despejado, aos poucos,
os grãos que passam entre as pedras em movimento.
Para
se fazer a farinha, é preciso passar, pelo menos, duas vezes o cereal entre as
pedras. Na primeira vez as pedras ficam um pouco mais afastadas, cerca de cinco
milímetros. Nesta fase é separada a pele e o amido do grão. Na segunda passagem
a distância entre as pedras é quase imensurável. Quando o produto sai pelo
espaço já é farinha, pronta para a polenta.
Como
alguém consegue fazer uma coisa dessas? Fazer duas pedras enormes trabalharem
assim, com tanta harmonia? Precisa ter muita inteligência, comentei admirado.
Apesar
de frequentar aquele lugar anos seguidos, eu não tinha parado para meditar a
respeito. Durante uma hora inteira eu ouvi Pedra e Olegário explicarem como as
pedras eram feitas, tão perfeitas.
“As
pedras são escolhidas, em duplas - tamanhos e consistências semelhantes. São
cortadas e deixadas parecidas em tamanho e forma. Depois são colocadas uma
sobre a outra, na mesma posição em serão usadas no moinho, então começa o
período de ajuste.
Elas
são esfregadas uma na outra, de forma que o desgaste corrija as diferenças. Uma
corrige a imperfeição da outra para que possam se encaixar. Para que fiquem perfeitamente
ajustadas. Enquanto houver “desajustes”, não estarão prontas para o moinho. As
duas pedras sofrem com o atrito, mas no final se moldam. Cada uma perde um
pouco de si para dar lugar a imperfeição do outro. Cada uma perde um pouco da
sua imperfeição para se moldar à outra.
E
se um dia uma das pedras se quebrar, a outra não poderá ser usada sem que passe
pelo mesmo processo com outra pedra, que por ventura também perdeu sua
parceira. Dessa forma, sempre que for fazer um moinho, é preciso de duas pedras
que se encaixam perfeitamente.”
Depois
dos sábios ensinamentos, terminamos de fazer o lanche da tarde, peguei minha
moagem e me preparei para ir embora. Antes de eu partir, Pedra me falou: “Sei
que vai pra longe, talvez nunca mais te veja. Mas não se esqueça da lição das
pedras do moinho - trata-se de uma das mais antigas lições da sabedoria humana
sobre relacionamentos”. Na época não entendi direito, mas acatei o conselho e
parti.
A
vida seguiu. Fui para o Mato Grosso, depois Rondônia e de Rondônia para o
mundo. 35 anos se passaram, cresci em estatura e em ciência, me casei seis
vezes e tive cinco filhos – o caçula já é quase adulto (17 anos). O tempo passa
e não me canso de aprender. Estou na fase de ruminar minhas memórias e
reaprender. Ver o que ficou guardado sem digerir.
Meu
pai Lucas costumava dizer que a vida é de fases, e a velhice serve para
repensarmos a vida. Muita coisa se passou rápido demais e não aproveitamos.
Muitas informações colocamos na mente sem tirar lições. O velho tinha razão.
Nesta semana me peguei pensando em Dona Andreza
e no moinho de pedra. Fiquei nostálgico e fiz um mergulho profundo em minhas
memórias, consegui sentir o cheiro do fubá quente, recém moído. Senti o sabor
das laranjas temporãs de maio. Parece que senti no corpo a água fria do açude
do Nilo e a dor no dedão do pé sem a unha, depois de um tropeção nas pedras dos
caminhos de Nova Prata.
Agora,
as lição das Pedras de Moinho fazem muito sentido para mim. Muitas vezes, nas
relações afetivas, profissionais, familiares e sociais, temos que ceder um
pouco. Deixar desgastar algum comportamento, crenças e até valores nossos, para
darmos lugar aos comportamentos, crenças e valores dos outros. Não importa se
somos a “mó de cima” ou a “mó de baixo”, precisamos nos entregar ao molde para
que a relação seja harmoniosa.
Pedras
de Moinho - Você sabe o que é uma pedra de moinho? Ou melhor, “Pedras de
Moinho”? Assim mesmo, no plural (Mó de baixo e Mó de cima). Elas são produzidas
em duplas e assim trabalham. Há muitos anos, muita antes da energia elétrica,
da indústria e da tecnologia, o homem já fazia farinha de com cereais, como
trigo, milho e sorgo em moinhos de pedra, movidos por força do homem, por
animais, vento ou água. Não há registro preciso dessa invenção, mas acredita-se
que existe há mais de seis mil anos.
Parabéns meu irmão! Adorei a história! Aproveitei para reavivar a memória, já que, diferente de você, não tenho " memória de elefante". Muitas lembranças do tempo que vivíamos em Nova Prata do Iguaçu... Bjus Dihdahh Haveroth
ResponderExcluirMinha irmã Maria Nadir.... obrigado por ler e comentar. Você é a principal responsável por eu achar que escrevo, as vezes, e gostar de leitura. Beijão!
ExcluirEstamos sempre nos amoldando sem interrupções,assim como o "Mo de baixo e o Mo de cima".Sempre enxergando com todos os sentidos e às características organolépticas sempre afiadas nas lembranças de outrora comparando-as com as hodiernas.Assim usaremos sempre o hemísféro direito um tanto quanto esquecido.....
ResponderExcluirGrazzie, Maestro Guerrini!!
ExcluirParabens! - Il tuo testo e scritto in maniera da immergersi subito, ritrovandosi a punto nel mezzo della storia. Seguendo, vedendo (tu come menhino/ragazzo/uomo...), facendo, si, essendo la bambina / la ragazza / la giovanne donna e la donna adulta. Va bene,"... 6 volte... oo !!!!" non ci possa andare, ma comprendere :)
ResponderExcluirLa cosa proprio grande per me e il fatto, ché qui sei tu, ché hai vissuto questa storia (perché il senso delle 2 pedras de Moinho conosco), la racconta "di prima mano", ci scopre l'insegnamento tanto antico quanto saggio e ce lo fa participare! Bellissimo!
Amica Daniela, brava donna, belissima, inteligenta e potente!!
ExcluirGrazie tanti per fa lettura della mia cronica. Grazie per comentare.
Sono troppo felice com te per avermi fatto importante com la tua attenzione.
Tu sei speciale!!
Bacio!
Recentemente visitei a zona rural das Serras Gaúchas e tive a oportunidade de conhecer um moinho construído pelos imigrantes italianos. É interessante notar que a história daquele moinho não está tão distante da sua história. Tirando a parte filosófica do seu conto, que é muito boa, me encanta a simplicidade daquela vida. Sua história me fez ver que " O quatrilho" e "A cocanha", excelentes livros, recomendo a leitura, não são meras fantasias do autor.
ResponderExcluirMestra Ivone, obrigado por comentar! É verdade... no sul tem varios moinhos que servem como pontos turísticos. Vou ler os livros que recomendaste. Sim, também creio que os autores colocam sempre um pouco de sua história até mesmo nos contos. (Eu anunciei que se tratava de um conto, mas acho que é uma crônica). De vez em quando me confundo... rsrsrsr
ExcluirObrigado por comentar.
Lindo conto Deja. parabéns.
ResponderExcluirObrigado, Loi!!!
ExcluirEspero ler, em breve, tua crônica sobre o balainho do Nono.
Beijos!
Linda História, me emocionei, senti e vivi enquanto lia. Parabéns, e fico no aguardo de muitas outras historias e quem sabe até um livro seu de contos. bjos Maria
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirFico feliz que tenha gostado!
ExcluirTenho outras história pra contar, em breve!
Obrigado por comentar
beijos!
Qua história linda! Também sou de Nova Prata, e como vc ia no moinho mas ia a cavalo doce lembranças.
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