Dejanir Haverroth
Eu e meus cinco filhos visitando o senário de minha infância |
Dizem que quando envelhecemos vamos de encontro às memórias mais
profundas, de quando éramos crianças. Vamos à busca da nossa criança interior, perdida,
esquecida ou sufocada no auge da força da vida adulta. Esse reencontro é o auge
da vida, quando juntamos a experiência com a pureza, a alma e a essência
verdadeira - o que nós somos de fato, no cerne de nossa identidade. Nesse
período parece que não sonhamos mais, enquanto dormimos. Os sonhos são
substituídos pelas memórias das coisas boas que vivemos. Das coisas que
realmente fizeram sentido na vida e fazem parte de nosso “eu” mais profundo.
Tudo o que fizemos na vida adulta, erros ou acertos, vitórias ou fracassos,
é resultado de nossa luta pela sobrevivência. O afã de ser útil, de competir,
mostrar força, deixar legados, deixar descendentes. Nesse período esquecemos
quem somos e competimos para provarmos que somos capazes. Queremos “Ser
alguém”. É uma pena que a vida não vem com um manual de instruções. Precisamos viver para aprender que já “somos
alguém”. Temos que viver coisas complexas para entendermos as simples.
Não sei por que, mas o mês de maio me traz muitas lembranças. Sobretudo de
uns anos pra cá. Penso que meu relógio biológico quer me dizer alguma coisa.
Hoje, depois de almoçar uma macarronada com meus filhos e amigos, fui sestear.
Não havia bebido nada além de água, mas sentia um sono tão profundo que parecia
mergulhar em mim. Embora o clima estivesse fresquinho (coisa rara em
Ji-Paraná), eu me deitei sem me cobrir e liguei o ar condicionado. Adormeci em
seguida.
Quando entrei no sonho fiz um mergulho profundo em minha infância. Como em
uma viagem ao passado. Aterrissei em um potreiro (cercado de pasto) onde
brinquei toda minha infância. Naquele momento eu brincava em baixo de um
pessegueiro com outras crianças. Eu tinha três anos de idade, talvez. Próximo
dali um paiol onde morávamos temporariamente. Minha mãe desmanchou a casa velha
para forçar meu pai a construir a nova - a madeira estava toda pronta, no
terreiro.
Embaixo de pessegueiro estava eu, a Tereza, sua irmã Maria e o Nande
Franciozi. Perto dali minhas irmãs mais velhas e meu irmão, que cuidavam da
Vana, minha irmã bebê. No terreiro do paiol minha mãe tomava chimarrão com a
Nona Franciozi. Era de tardezinha e o frio do inverno chegava de mansinho. O
dia era curto e lembro que o sol ameaçava se esconder por detrás da serrinha
dos pinheiros do Írio. Do outro lado se via longe, além do vale, e o sol
refletia na igreja da Floriza. Era o momento mais belo do dia. O cheiro da
batata assada no forno a lenha anunciava a hora de reunir todos para comer.
Nesse senário comum de minha infância tinha uma coisa que eu ainda não
conhecia. Todo esse romantismo e o desejo pulsante de viver a vida, que estava
começando, me fez perceber que além de tudo aquilo, havia uma beleza que, a
partir daquele dia, passaria a apreciar. Com pureza no coração e uma
afetividade que até hoje carrego no peito, convidei Tereza, que brincava comigo
debaixo de pessegueiro, para comermos batata doce quentinha, recém saída do
forno a lenha. Ela me olhou tímida e eu a abracei e beijei seu rosto. Em minha
inocência, queria incentiva-la a vencer a timidez.
Aquela foi uma das primeiras cenas da novela de minha vida. Teve poucos
expectadores, e eram justamente meus irmãos. É a memória mais marcante e a base
de minha identidade consciente, e eu tinha testemunhas. Por conta disso, eu
sentiria o “peso” daquele beijo a partir do dia seguinte. Naquela hora
lanchamos, Tereza e suas irmãs foram pra casa e logo nos lavamos na gamela e
fomos para dentro de casa. No inverno as crianças se recolhem cedo para evitar
resfriados e outras doenças trazidas pelo frio.
A vida era tranquila naquele sítio em Nova Prata do Iguaçú. Foi ali que
eu nasci - na casa que minha mãe havia desmanchado para dar lugar à casa
nova. Lembro como se fosse hoje a velha
casa. Minha mãe se admira quando eu conto com detalhes minhas primeiras
memórias da infância e que me levam a uma velha casa. Eu devia ter dois anos de
idade. Era uma casa alta do chão, apoiada em troncos de madeiras. Lembro-me da
cozinha - para entrar havia uma escada bem alta, e da cozinha para o restante
da casa tinha outra escada, um pouco menor, onde minha irmã Ade, sentava para dar
mamadeira à outra, recém-nascida.
Do outro lado da sanga moravam duas famílias. Os Franciozi e os Varalli.
Seu Ernesto Franciozi tinha muitos filhos, dentre eles várias meninas, todas
muito bonitas. A Nona Franciozi, mãe de Ernesto, era bem velhinha e andava bem
corcunda, apoiada em um bastão. Morava sozinha, numa casinha perto do filho. Os
Varalli também tinham varias mulheres, todas bonitas, e um menino, Moacir, com
quem fizemos fortes laços de amizade. Os varalli também tinham uma matriarca –
a Nona Varalli. Ela era procurada por todos os moradores da redondeza para
fazer xaropes, rezas e partos. Era nossa curandeira.
Mais perto de casa, do outro lado da cerca do potreiro, havia um rancho à
beira-chão, coberto com lascas de madeira. Ao lado um pinheiro e aos fundos um
açude. Ali morava uma família de caboclos. Seu João e seus filhos, dentre eles
três meninas: Jandira, a mais velha; Maria, a do meio e Tereza, a mais nova -
com a minha idade. Nossa relação de amizade era forte. Quase todos os dias nos
encontrávamos para brincar – no potreiro, no paiol ou nos montes de palhas de
milho ou feijão, no meio da roça.
O barraco do Seu João era muito simples, porém muito alegre. Eles não
tinham rádio de pilha, mas nem precisava – eles cantavam o dia todo. Toda a
família cantava e ouvíamos lá de casa. Todas as noites eles acendiam uma
fogueira do lado de fora da casa. Diziam que era para proteger de insetos,
cobras e outros animais, além de aquecer nos dias frios. Em volta da fogueira
sempre tinha batata doce, pinhão ou milho verde, assados nas brasas.
Era uma vida simples que eles levavam, mas nada faltava - muito menos
calor humano. Embora minha família fosse
descendente de alemães, nunca tivemos preconceito racial em nossa família.
Nunca ouvi de meus familiares alguém dizer que éramos melhores que os outros
por conta de “raça”. Também não éramos capitalistas e não olhávamos as pessoas
com base em sua condição financeira. Minha
mãe é cabocla violeira e meu pai (in memoriam) um ex-seminarista. Tínhamos
muito em comum com aquela família, portanto nossa convivência era muito
harmoniosa e despretensiosa.
A viagem ao passado terminou depois que eu visitei as pessoas que fizeram
parte de minha primeira infância. Em minhas lembranças, olhei cada um nos
olhos, sorri, disse coisas sem falar e me emocionei com elas. Todas isso
aconteceu durante aquele profundo sono, na tarde de um domingo de Maio, depois
da macarronada. Ao acordar, fiquei na cama por cerca de duas horas, meditando
sobre o sonho e refletindo sobre a vida. Como certas coisas marcam nosso ser!?
Conclusão
Naquele dia, tempo e lugar onde o sonho me levou, foi o dia em que eu
beijei Tereza. Ali se inaugurou em minha mente um novo caminho neural, que foi
reforçado ao longo da vida. Eu era um piá genioso, teimoso (quem não é com três
anos de idade?), e eu continuo sendo. Nunca fomos violentos, e a única arma que
conheci na infância é o que hoje chamamos de bulling. A única forma de ir a
forra com alguém era chamar de apelido e “inticar”. No dia seguinte ao beijo,
na primeira pirraça que eu fiz para meus irmãos, passei a ouvir um sonoro “Deja
beija Tereza!”. Convivi com a família de Tereza e com ela, é claro, até meus
sete anos. Eu não lembro quantas vezes “beijei Tereza” e, quando fiz, foi na
mais pura inocência. Diferente de hoje, naquele tempo não existia malícia com
tão pouca idade.
Esse capítulo de minha infância nunca foi, nem de longe, algo limitante.
No fundo, eu me sentia prestigiado quando alguém dedicava essa musica a mim.
Sentia na verdade que se tratava de uma forma de carinho. A maioria das vezes
era motivo de graça e alegria, embora eu me mantivesse sisudo para bancar de
durão e não admitir que eu fosse “O Cara que Beijou Tereza”.
Gosto muito de beijar e tive o privilégio de beijar muitas mulheres ao
longo de meu quase meio século de vida. Algumas nem o nome eu lembro, outras
nem do beijo eu lembro. Mas hoje, pela primeira vez eu assumo: sou “O Cara que
beijou Tereza”. E faria tudo de novo, inclusive com aquela musiquinha que ainda
ouço quando passeio no meu “eu” mais profundo. Na verdade eu sou o “Deja Beija
Tereza”, porque, lá no fundo, para mim toda mulher é (uma) Tereza.